Eu era ainda criança quando vi Edgar pela primeira vez. Foi no dia que
meu pai me levou ao seu consultório. Recordo-me da primeira impressão
que tive: um homem alto, de sobrancelhas grossas, cabelos negros e
curtos, pele clara e os olhos característicos dos japoneses e de outros
asiáticos. Estava sorridente (quase sempre Edgar é sorridente). Porém eu
era pequeno e assustei-me. Não sei porquê algumas pessoas transmitem
tranquilidade às crianças e outras não o fazem, não importa quão
simpáticas sejam.
Seus pais deram-lhe um nome japonês: Yoshiro. No entanto, nunca
sentiu-se confortável com o nome com que fora registrado. Por isso
escolheu para si mesmo chamar-se de Edgar, e é assim que gosta de ser
conhecido.
No consultório, um fato que chamou-me a atenção já de início foram seus
diplomas e certificados. Eram muitos, todos distribuídos pela parede e
protegidos por uma superfície de vidro. Aquela seria a primeira de
muitas vezes em que eu iria tratar-me com ele. Enquanto aguardava a vez,
entre uma revista e outra, eu os admirava. Acredito que nunca deixei de
olhá-los, mesmo que de relance, sempre que voltei ali. Cursos,
especializações das mais diversas, em muitos lugares e muitas épocas. Eu
sempre perguntei a mim mesmo como podia ser possível alguém dominar
tantas técnicas e especialidades. É algo que até contradiz o próprio
conceito de especialidade. Afinal, se você tem diversas delas, você pode
ser considerado um especialista?
Se eu não conhecesse Edgar, eu poderia dizer que todos aqueles
documentos eram apenas conversa fiada, e que não era possível alguém
conhecer tanto sobre seu ofício. Mas eu o conheço. Edgar é, de fato, um
odontologista capaz de fazer qualquer coisa. Do mais banal ao mais
complexo. Seja uma simples limpeza, seja um canal, uma obturação, uma
extração, uma prótese, etc. Nada lhe causa insegurança.
Na realidade, há uma ressalva: extrações deixam-no impaciente. Certa vez
eu perguntei a ele se seria indicada uma extração em um dos meus dentes
do siso. Respondeu-me de uma forma, no mínimo, inusitada:
- Rogério, eu posso até extrair esse seu dente, mas vou cobrar mais do que o faria para um canal...
Espantei-me. Era uma forma de cobrar que me parecia bizarramente invertida. Repliquei:
- Nossa! Porque isso? A mim parece não fazer sentido algum.
Ele prosseguiu:
- Na semana passada eu tratei uma doutora, professora universitária.
Você não imagina quanto trabalho eu tive para extrair um dente dela. Por
isso eu digo: vamos cuidar desse dente ao invés de extraí-lo. Isso vai
lhe sair muito mais barato.
E assim o fizemos.
Certa vez eu precisei tratar um canal. Edgar propôs uma alternativa:
- Bom, este é um caso de canal. Eu posso tratá-lo da forma que se faz usualmente, porém existe uma outra opção.
- Outra opção?
- Sim. É algo que não se faz mais, mas que eu acredito que vai dar
certo. Eu posso, como diria... mumificar esse canal. Ele simplesmente
vai secar e perder a função.
Edgar e suas experiências. Concordei em deixá-lo realizar o
procedimento. Muitos anos se passaram então e eu havia viajado.
Mastiguei algo que acabou por quebrar aquele dente. Como iria passar
muitos dias ali, resolvi ir a uma clínica odontológica. Após analisar
uma radiografia de meu dente, um dos profissionais resolveu pedir ajuda
ao vizinho, do outro consultório:
- Não sei como interpretar esta radiografia. Veja só (mostrando a
radiografia). Não foi feito o canal, mas aparentemente não há o nervo.
O colega chamou um outro que, enfim, reconheceu a técnica que havia sido utilizada. Voltou-se para mim:
- Esta técnica é bem pouco usual. Não está errada, mas não se costuma
realizá-la. Não foi feito o tratamento do canal mas o nervo foi morto.
Você estava ciente disso?
- Sim. Eu estava - confirmei.
Esta, na realidade, não foi a única vez em que precisei explicar o tratamento deste meu dente.
Pelo que soube, não demorou muito para que Edgar se tornasse o dentista
mais requisitado da Vila Suíça. Digo dentista ao invés de odontologista
porque é assim que o povo se habituou a chamá-lo, e eu me incluo no
povo. Sua fama cresceu, fosse por todas suas especialidades, fosse pelos
tratamentos com valor realmente em conta que sempre praticou, e fosse
principalmente pelo prazer com que lida com sua clientela, sempre
contando histórias. Certa vez contou-me uma delas:
- Vou contar-lhe algo sobre o Japão.
- Fique à vontade - balbuciei com um lado da boca todo anestesiado.
- Aqui no Brasil é muito perigoso para as crianças atravessarem as ruas sozinhas. Concorda?
Seria certamente mais fácil para mim se eu apenas precisasse ouvi-lo,
porém ele frequentemente solicitava que eu interagisse. Eu nada disse e
ele repetiu:
- Concorda?
Não havia o que fazer. Eu precisava dar-lhe um retorno:
- Sim. Concordo.
Ele continuou:
- Pois então, no Japão há bandeirinhas para atravessar as ruas. A última
criança a atravessar leva a bandeirinha consigo para sinalizar aos
condutores dos veículos de que não há mais crianças a passar. Você sabia
disso?
- Não. Não sabia - respondi admirado.
- Um país com educação no trânsito tem de dar segurança aos pedestres, e principalmente às crianças - concluiu.
Noutro dia, quando fui ao trabalho, conversei com Sandra, uma colega
também de origem japonesa, e contei-lhe o que Edgar tinha dito a mim. No
seu ponto de vista, aquela era uma história hilariante. Uma invenção da
mente de meu dentista. A imagem pessoal que eu tinha de Edgar feriu-se
com aquele comentário.
Dei atenção a algumas pessoas que o julgavam de forma depreciativa
apenas por sua simplicidade aparente. Pessoas que consideravam "o livro
pela capa", como se costuma dizer. Procurei outros profissionais e
descobri que se dividiam em especialidades, cada um enxergando apenas
parte do que deveria ser feito. Tratei e retratei meus dentes com estes.
Quando comparados a Edgar sempre aparentaram saber menos e os
resultados dos tratamentos eram menos permanentes do que quando Edgar os
conduzia.
Hoje uma obturação caiu e pensei em Edgar, após muitos anos sem vê-lo.
Lembrei-me da história da bandeirinha e procurei alguns termos no
Google: bandeirinha, atravessar, rua, Japão.
Escrevi tudo junto, sem vírgulas e sem aspas. Encontrei já de cara:
"Japão é assim: BANDEIRINHA PARA ATRAVESSAR A RUA". Fiquei surpreso com o
achado. Edgar estava certo desde o início. Procuro seu telefone na lista
e o encontro. Teclo os dígitos, identifico-me e ouço sua voz em
resposta:
- Oi Rogério! Há quanto tempo! Eu nunca mais o vi por aqui.
- Edgar, eu gostaria de tratar um dente. Eu posso ir aí hoje?
- Mas é claro. Pode vir sim. A tarde está bem folgada.
Chego então à Vila Suíça e subo as mesmas escadas, ansioso para revê-lo e
para desejar-lhe um Feliz Ano Novo, com votos sinceros de longos anos
de vida e muita saúde. É sempre bom quando se reencontra um velho amigo.
pmeneghjr
Curitiba
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Thanks! (and the tanks started the war for the desperation of the polite general).
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